Nuvens à Mesa

Nas palavras de Miguel Esteves Cardoso  “os melhores petiscos são aqueles que não podem ser comprados – por muito dinheiro ou amor que se tenha – mas somente adquiridos por ter nascido e vivido num determinado lugar; por ser filho, sobrinho ou compadre de determinadas pessoas”. Não encontro palavras mais oportunas para começar esta história de uma  doce tradição.

Por não ter grandes segredos na preparação, diz-se que a receita das farófias é simples, mas o doce de colher que dali resulta, casa na perfeição um creme delicadamente fino com a subtileza das claras em castelo, cozidas em leite aromatizado com limão e canela. Duas texturas combinam-se numa sobremesa leve, levíssima como as nuvens que nos acompanham lá fora por estes dias!

A pesquisa sobre a origem da receita, conduziu-me a Virgílio Gomes, que refere no livro Doces da nossa vida ser do convento de Nossa Senhora da Conceição, de Loulé, a receita portuguesa mais antiga que encontrou de um doce semelhante às farófias mas que apelidaram de nuvens (nome perfeito!). Esclarece ainda que, a tradição das farófias não deverá ser anterior ao séc. XVIII, ou a existir, não terá sido escrita a receita, talvez por ser considerada simples e de prática doméstica. Publicada em livro, uma receita de farófias aparece, pela primeira vez, no inicio do séc.XX, no Tratado Completo de Cozinha e de Copa escrito por Carlos Bento da Maia

Acompanha-me nesta viagem no tempo uma outra, a da memória das farófias perfeitas que a minha mãe fazia quando eu era pequena, o sabor da canela esse foi fatal! Enraizou-se em mim e definiu um gosto que nunca me abandonou. Perguntei-lhe há tempos, se era  doce que tivesse aprendido a fazer em Coura com as mulheres da família. Fiquei a saber que não, quer na minha família materna quer na paterna, existiam (e existem para minha alegria!) exímias doceiras, mas na arte do arroz doce, da aletria e do leite creme queimado, sobremesas muito presentes na mesa Courense (e de todo o Minho!).

Soube então, que foi na passagem por Luanda, onde residiu  nos idos anos 70,  que aprendeu esta receita, com uma vizinha portuguesa, que seria da região de Lisboa. Tenho presente que Maria de Lourdes Modesto, na magistral obra “Cozinha Tradicional Portuguesa” apresenta as farófias na região estremenha, sendo a receita precisamente esta, que guardo da infância, com o creme feito com as gemas e ligeiramente engrossado com um pouco de maizena, (há outras versões em que, por exemplo, o creme é substituído por um doce de ovos).

Se a minha mãe teve de ir a África para aprender a fazer farófias sem nunca escrever a receita ( filha para quê? a receita é tão simples, uma farófia, mesmo! basta ver fazer e já está, aprende-se logo sem  pesar nem medir!) mais longe tiveram de ir os portugueses para que a canela se tornasse o ingrediente acessível e vulgar que temos hoje à disposição e que é a fragrância das nossas farófias. Falar de farófias e não fazer a devida vénia à canela seria no mínimo, uma injustiça histórica!

Sabe-se que a canela já era conhecida desde a Antiguidade, não sendo usada tanto na culinária mas com outros fins, por exemplo, em mezinhas para embalsamar cadáveres (Egipto), como aromatizante ou na preparação de remédios. Nao posso deixar de dizer que na Bíblia, podemos encontrar referências ao cinamomo (seria a canela?) em pelo menos três livros: Êxodo (30:23), como uma das partes do óleo da Santa unção, nos Provérbios (7:17), como um dos perfumes do leito conjugal usado pela adúltera e no Cântico dos Cânticos (4:14), sendo uma das plantas do jardim a que se compara a imagem da noiva.

O comércio da canela  era feito pelos árabes, que mantiveram secreta a origem do produto elevando assim o seu valor comercial. Há registos fantásticos sobre a origem da canela, como este excerto de Heródoto que encontrei no Alimentos ao sabor da Historia de Fortunato da Câmara:

“para colher canela era preciso vestir um traje de corpo inteiro feito com couro de boi, cobrindo tudo excepto os olhos. Somente assim a pessoa estaria protegida das criaturas aladas semelhantes a morcegos que gritam horrivelmente e são muito ferozes…. É preciso impedir que elas ataquem os olhos dos homens enquanto eles cortam a canela”

Estas histórias contribuíram para manter a aura e a exclusividade do uso da canela, que era um ingrediente acessível somente a classes privilegiadas. O monopólio das rotas e do comércio das especiarias, manteve-se nas mãos dos muçulmanos até ao séc. XV, partilhado com os Italianos  ( Genoveses e Venezianos) que as distribuíam para o resto da Europa (apesar das bulas papais proibirem estas relações comerciais com os infiéis, parece que valores mais altos se levantavam – ontem, como hoje!). Os Portugueses lançam-se na aventura dos descobrimentos, entre outros motivos, para descobrir uma rota marítima e conquistar um mercado que podia trazer avultados lucros à coroa. A canela, foi desde logo uma das especiarias mais procuradas. Descobrem-na na ilha de Ceilão (Sri Lanka), a partir da qual enviaram toneladas para a Europa até ao séc. XVII, altura em que os holandeses tomam essa posição. Os Portugueses, esses dão a volta, mais para ocidente, os olhos já postos noutras riquezas, desta feita o ouro e o açúcar do Brasil!
Mas a canela, essa ficou enraizada para sempre na tradição culinária portuguesa. Celebremos então, este feito lusitano, com umas belíssimas farófias!

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Farófias

Ingredientes

175g de açúcar
6 ovos
1 colher de sobremesa de amido de milho
1l de leite
1 casca de limão
canela em pó a gosto para polvilhar

Preparação

Comece por separar as gemas das claras e bata as claras em castelo.

Quando obtiver uma espuma firme adicione 50g de açúcar e bata um pouco mais até ficarem bem firmes.

Leve ao lume o leite com a casca de limão (por vezes junto pau de canela também). Quando começar a ferver, reduza o lume, e mantenha uma fervura suave. Com cuidado junte colheradas de claras batidas ao leite fervente, deixe cozer não mais de meio minuto de cada lado. O único segredo é este, impedir que cozam demasiado. Retire do leite e deixe escorrer bem num passador. Repita a operação até não haver mais claras.

Dissolva o amido de milho num pouco de leite frio,  adicione as gemas e o restante açúcar. Adicione ao restante leite, leve ao lume, mexendo sempre, até formar um creme .
Deixe arrefecer um pouco e polvilhe com canela a gosto! Eu exagero  um bocadinho, mas é ao gosto cá de casa.
Serve-se morno ou frio e  sabe sempre tão bem!

 

2 thoughts on “Nuvens à Mesa

  1. Depois de ler esta “estória” que me permitiu viajar por lugares tão distantes no tempo e no espaço , senti o cheiro e a enorme vontade de provar uma farófia das que apresentas na fotografia. Vou seguir esta receita e deliciar-me com este doce que adoro!
    Parabéns e um beijinho

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